Defesa do Estado e ampla defesa

19 de fevereiro de 2024

Por Antonio Ruiz Filho

Uma sociedade que se pretenda livre e democrática, organizada a partir de um Estado de Direito, deve primar por persecução criminal fundada no devido processo legal, no contraditório e na ampla defesa. São conceitos indissociáveis, de cuja aplicação jamais se pode descuidar.

Apesar disso, especialmente a ampla defesa é malbaratada e sofre maiores percalços quando se trata de criminosos expostos na mídia, ou crimes de agentes públicos que escandalizem a opinião pública – ou parte dela. E de forma recorrente também se subtrai essa garantia aos “socialmente invisibilizados” pela cor da pele ou pela nossa acachapante desigualdade socioeconômica.

Nessas oportunidades aparece o desejo de que alguém pilhado na prática de crimes graves tenha condenação exemplar, quando toda e qualquer punição criminal precisa ser mais que tudo justa, porque fundada nos parâmetros legais e constitucionais pré-estabelecidos.

O Direito Penal e o seu processo também estão a serviço da manutenção do Estado Democrático de Direito, e o essencial combate aos seus ofensores deve ser enérgico e perseverante – como se extrai da atuação da nossa Suprema Corte. Mas, ao mesmo tempo, tem de ser rigoroso quanto ao respeito das salvaguardas da Lei e da Constituição, o que nem sempre se observa. Nenhum excesso há de ser permitido, sob o risco de subverter as virtudes que se retira do elevado interesse social. Aliás, foi o que se viu em relação à Operação Lava Jato e suas tantas ramificações, afundadas num mar de ilegalidades.

A recente Operação Tempus Veritatis, cujo objetivo é alcançar criminalmente quem pretendeu macular a nossa democracia para a sua indevida manutenção no poder central do país, provocou discussão, entre outros tantos temas relevantes, sobre o direito de defesa.

O ministro Alexandre de Moraes, ao decidir sobre medidas cautelares originadas de representação da Polícia Federal, consignou: “a cautelar de proibição de manter contato com os demais investigados é medida que se faz necessária para resguardar a investigação, evitando-se a combinação de versões, além de inibir possíveis influências indevidas no ânimo de testemunhas e de outras pessoas que possam colaborar com o esclarecimentos dos fatos (fls. 231-232).”

E ainda completou Sua Excelência: “A medida cautelar de proibição de manter contato com os demais investigados, inclusive por meio de seus advogados, é necessária para garantia da regular colheita de provas durante a investigação, sem que haja interferência no processo investigativo por parte dos mencionados investigados, como já determinei em inúmeras investigações semelhantes (...).”

O art. 319 do Código de Processo Penal estabelece, como alternativa à prisão cautelar, “III - proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante.”

O que se extrai da exegese do dispositivo é que a proibição se refere a pessoa que seja ou possa vir a ser testemunha dos fatos, mas é razoável entender que também possa ser estendida à reunião de coautores, para evitar a prática de novos crimes ou impedir a concretização daqueles que se encontrem em curso, medida menos grave que a própria prisão antecipada prevista nessas circunstâncias.

Além do mais, influenciar, coagir, amedrontar, cooptar testemunhas é causa de prisão preventiva, assim como o desrespeito ao mero contato entre os agentes do crime (quando a liberdade é condicionada a evitá-lo) também dará motivo ao encarceramento prematuro.

Mas tal medida, a nosso juízo, não pode ser decretada para evitar a “combinação de versões” e muito menos para restringir o exercício da defesa por meio de advogados.

Sabe-se que o nosso processo penal não impõe a ninguém que produza provas contra si mesmo, oferecendo ao investigado/acusado o direito de permanecer calado ou expor a versão que lhe seja mais conveniente (essa conduta faz parte do procedimento e tal possibilidade é do conhecimento de todos os envolvidos), com o auxílio da defesa técnica de advogado, público ou particular. Não há na lei brasileira a prática de perjúrio pelo réu.

Por essas razões, não faz o menor sentido pretender evitar a possível “combinação de versões”, o que se pode conceber como um direito inerente ao exercício da garantia constitucional da ampla defesa, e que em nada impede a regularidade da persecução penal para que se alcance o objetivo de punir os infratores da lei.

Pior ainda é pretender impedir o livre exercício profissional da advocacia, cujo desempenho está imbricado com a ampla defesa a que todos temos direito, independentemente do mal que nos possa ser atribuído, sem esquecer a presunção de inocência.

Não é apenas prerrogativa dos advogados dos investigados conversarem e trocarem ideias sobre a linha de defesa que vão sugerir a seus constituintes, como é justificável que assim procedam, agindo com cautela, inclusive pelos inconvenientes que uma futura colaboração premiada possa trazer.

Sempre foi assim, e não precisa mudar, pois isso nunca foi empecilho à condenação de malfeitores com base em provas produzidas pela acusação, respeitadas as balizas legais, sem restrições ao regular exercício da ampla defesa, garantia constitucional de todo cidadão, aparelhada pela defesa técnica de seus advogados.

Publicado originalmente no Estadão.com