“Eles os Juízes, vistos por nós, os advogados”

1 de agosto de 2023

Por Antonio Ruiz Filho

Nos primeiros anos da minha vida profissional, o grande criminalista Tales Castelo Branco (com quem me iniciei na especialidade e trabalhei por 14 anos), recomendou-me a leitura do pequeno livro do título, escrito na primeira metade do século XX, pelo notável advogado, professor, jurista e político italiano Piero Calamandrei.

Percorri aquelas páginas com enorme prazer, tentando absorver (“introjetar”, como diria Waldir Troncoso Peres, outro grande criminalista) as tantas lições da preciosa obra. Aquele que tiver alma de advogado e amor genuíno pela profissão, não conterá a emoção na leitura, tampouco o riso e a reflexão.

O reconhecido processualista da Faculdade de Direito da USP, José Rogério Cruz e Tucci, amigo de longa data, dedicou-se a escrever sobre a vida e obra de Calamandrei, onde se encontra o seguinte relato:

“(...) Durante o meu curso de bacharelado, não sei precisar bem quando, bisbilhotando a biblioteca de meu pai [o inolvidável Rogério Lauria Tucci], deparei-me com um livrinho, com o curioso título, no original, Elogio dei giudici scritto da un avvocato. Intrigado, logo me perguntei: como é possível um advogado elogiar, de uma só vez, ‘os juízes’, ‘todos os juízes’? Tratava-se da tradução portuguesa (Lisboa, Livr. Clássica Ed., 1960) da 2ª edição italiana de 1938, da conhecidíssima e polêmica obra de Piero Calamandrei. Li-o de um só fôlego. Depois, com a devida calma, adquiri a 4ª edição original e póstuma, consideravelmente aumentada, com introdução de Paulo Barile (Firenze, Ponte Ed. 1959. Nunca mais a abandonei! (...)”.

Curioso observar que minha experiência com o livro tenha sido similar à relatada pelo mestre Tucci. Depois de conhecer a obra, encontrei-a num sebo, um livreto de cor pálida na versão portuguesa, a que se não daria muita importância pela capa e tamanho. Não perdi a oportunidade de incorporá-la à minha biblioteca. Bem mais tarde, assim como Tucci, adquiri a versão póstuma que veio a público em 1959, encorpada pela adição de cinco novos capítulos e mais parágrafos, editada entre nós pela Martins Fontes (1995).

As primeiras edições (1935 e 1938) são praticamente idênticas, como relata Paolo Barile, outro reconhecido jurista italiano, que prefaciou a última edição. Na terceira edição com acréscimos (1954), pode-se sentir certo amargor que antes não havia, mas se explica: além da experiência profissional acumulada pelo autor nesse período, entre uma e outra edição, ocorreu a 2ª Guerra Mundial e a Itália viveu o fascismo de Mussolini, “um período de excepcionais cataclismos, em que a justiça também teve suas catástrofes (mas igualmente suas vitórias); período das perseguições políticas e raciais, a guerra externa e interna, a longa agonia da passagem da ditadura à liberdade, depois a cansativa década do pós-guerra, durante a qual sucedeu infelizmente que os escândalos judiciários se tornaram, pouco a pouco, a arma preferida das lutas partidárias”.

Engana-se quem faz juízo da obra pelo título. Não se trata apenas de louvar a magistratura (o título original era Elogio dei Giudici...), mas de ressaltar aquilo que a função de julgar encerra de sublime, ao mesmo tempo em que critica, sem peias, as suas mazelas. Também contém inúmeros ensinamentos e comentários sobre a advocacia, seus erros e acertos.

Impressiona verificar a atualidade dos comentários. Diz o autor no prefácio à edição aumentada: “em tempos de tirania ou de ódios civis irrefreados parece que falta o terreno em que possa deitar raízes qualquer forma de justiça ordenada e imparcial.”

Também observa o autor florentino:

“(...) Os advogados e os juízes desempenham no mecanismo da justiça o papel das cores complementares na pintura. As qualidades que mais se respeitam nos magistrados: a imparcialidade, a resistência a todas as seduções do sentimento, a sua indiferença serena, quase sacerdotal, essas qualidades, que purificam e recompõem sob a rígida forma legal as manifestações mais vergonhosas da vida, não teriam tamanho brilho se, ao seu lado, para lhes dar mais relevo, não pudessem opor as virtudes contrárias dos advogados, isto é, a paixão da luta generosa pelo direito, a revolta contra os subterfúgios, a tendência – contrária à dos juízes – para adoçar pelo calor do sentimento o duro metal das leis, a fim de melhor adaptar à viva realidade humana.”

Não é minha intenção antecipar o que cada um poderá sentir ao se deparar com as considerações de Calamandrei sobre a vida, atribulações e convivência de juízes e advogados. Desejo apenas enfatizar que vale muito a pena conhecê-las e saber como as via o excepcional avvocato.

Para encerrar, transcrevo as primeiras lições da obra, que sugerem o que se poderá extrair de elementar para o pleno exercício da advocacia:

“Quem foi o inventor do cômodo e vil mote habent sua sidera lites, com o qual, sob decoroso manto latino, quer-se dizer substancialmente que a justiça é um jogo que não se deve levar a sério? Com certeza um causídico sem escrúpulos e sem paixão, que queria com isso justificar todas as negligências, adormentar todos os remorsos, evitar todas as fadigas. Mas você, jovem advogado, não se afeiçoe a esse mote de resignação imbele, debilitante como um narcótico; queime o papel em que se encontra escrito e, quando aceitar uma causa que achar boa, ponha-se ardentemente ao trabalho, com a certeza de que quem tem fé na justiça sempre consegue, a despeito dos astrólogos, mudar o curso das estrelas.”

Recomendo a leitura, destas que considero serem as mais belas páginas já publicadas sobre as carreiras forenses. Mesmo para quem já as leu no passado, justifica-se recordar tudo o que elas contêm.

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