O Julgamento do Juiz das Garantias

15 de setembro de 2023

Por Antonio Ruiz Filho

A Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, surgiu no nosso direito como um presente de Natal. Originada da discussão sobre o famigerado Pacote Anticrime, de triste memória, surpreendeu a todos pelos avanços na área processual penal, apesar de alguns significativos tropeços, pois já se sabe, comprovadamente, que o recrudescimento da lei penal e do seu processo não está na razão direta da melhora nos índices de criminalidade.

No campo processual penal, há “novidades” (o debate sobre essas matérias já era antigo) que trazem avanços sensíveis: a afirmação do sistema acusatório, o aprimoramento quanto à excepcionalidade da prisão preventiva, a instituição do Juiz das Garantias.

Sobre a prisão provisória no curso do processo, portanto sem o trânsito em julgado, o legislador impôs severas condições que, se bem aplicadas, podem fazer cessar as prisões preventivas decretadas a granel ou sem demonstração de efetiva indispensabilidade, considerando-se o seu caráter excepcional por todos reconhecido.

A par da regra geral de responder ao processo em liberdade, como corolário da presunção de inocência garantida constitucionalmente, a decretação da prisão preventiva, em casos que poderiam ser remediados com outras soluções (ver art. 319 do CPP), ainda está entranhada na nossa cultura judiciária, o que não colabora para arrefecer a insegurança e ainda cria distorções, como presídios superlotados que, ao contrário do que se almeja, acabam por fomentar o crime organizado.

Atenta a essa problemática, a Lei criou limitação importante para prisões preventivas, obrigando o juiz que as decretar (somente a pedido, art. 311 do CPP), passados 90 dias e “de ofício”, à reavaliação da sua necessidade, agregando fundamentos que possam justificar a manutenção, “sob pena de tornar a prisão ilegal” (art. 316, parágrafo único, do CPP, acrescido pela Lei nº 13. 964/19).

Essa salutar medida – que viria em socorro de prisões provisórias excessivamente longas e desnecessárias, ou cuja motivação teria cessado nesse lapso temporal (razoável) de 90 dias – foi reescrita pelo Supremo Tribunal Federal, ao decidir que a expressão “de ofício” não gera obrigação automática para o magistrado, devendo ser ele “instado” a se manifestar sobre a prisão cautelar (ADI nº 6.581), assim excluindo a possibilidade de a prisão ser revogada pela inércia do juiz. Essa interpretação contra legem vai alcançar principalmente os menos assistidos, que são a maioria da nossa “clientela” carcerária. Aqueles que tiverem advogados constituídos vão sempre instar o juiz a rever seu ato dentro dos parâmetros legais e no prazo estabelecido.

Sistema acusatório

Por outro lado, já era tempo de sepultar os resquícios do desgastado sistema inquisitório, de que o nosso processo penal ainda se ressente de ser permeado aqui e ali, para agora abrigar, definitivamente, um processo penal acusatório, moderno e democrático, em sintonia com as legislações mais avançadas.

O processo penal acusatório privilegia a separação de funções, de maneira que o juiz não interfere na produção das provas pelas partes, mantendo-se inerte, na sua posição de total equidistância e imparcialidade. Não se permite ao julgador socorrer a defesa menos aparelhada, assim como, menos ainda, ele não concorre para que a acusação seja mais efetiva.

Com essa finalidade, a nova Lei fez inserir no Código de Processo Penal o art. 3-A: “O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação do órgão de acusação”.

Aqui, também, o Supremo Tribunal Federal interveio para, mediante “interpretação conforme” à Constituição, assentar que o juiz “pontualmente, nos limites legalmente autorizados, pode determinar a realização de diligências suplementares, para o fim de dirimir dúvida sobre questão relevante para o julgamento de mérito”.

Em contraposição ao dispositivo legal previsto na Lei nº 13.964/19, que é claro, direto e, mais do que tudo, orientado por comandos constitucionais que apontam para o sistema acusatório, a decisão do STF, revelando injustificável temor de avançar, recorre a expressões indeterminadas, como “pontualmente” (em que circunstâncias?), “diligências suplementares” (quais?), “questão relevante para o julgamento de mérito” (como se vai apurar essa relevância?), que provocarão incertezas e, muito provavelmente, injustiças.

De resto, vale lembrar antiga regra de hermenêutica: in claris cessant interpretatio.

“Interpretação conforme”

Ao compulsar o resultado do julgamento das ADIs que confrontaram a implantação do Juiz das Garantias, cujo substancioso acórdão ainda não foi concluído, encontra-se várias vezes a expressão “interpretação conforme”, cuja larga extensão vem de um “moderno constitucionalismo”. É preciso examinar o acórdão para uma posição definitiva sobre o alcance que se deu a esse conceito jurídico. Mas há indicativo de que a exegese da Lei nova terá ido além do quanto expresso no texto legal, para ficar aquém das decisões políticas do legislador. Dessa forma, o intérprete, ainda que extremamente qualificado e destinado a esse importante mister de interpretar a Constituição, acaba por subverter o texto e o sentido original da Lei. Afinal, estamos em um sistema de democracia representativa no qual “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos”(art. 1º, parágrafo único, da CF).

Sendo assim, não é dado ao intérprete reescrever o texto legal votado no Parlamento, conforme a sua apreciação sobre o que é mais adequado ou oportuno. Mas parece que foi o que aconteceu aqui, como de resto, tem ocorrido noutros julgamentos da Suprema Corte.

Como assevera o constitucionalista Gilmar Mendes, em concurso com outros juristas, “em sede de controle de constitucionalidade, como todos sabem, os tribunais devem comportar-se como legisladores negativos, anulando as leis contrárias à Constituição, quando for o caso, e jamais como produtores de normas, ainda que essa produção se faça por via interpretativa” (MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 112-113 - negritamos).

O instituto do Juiz das Garantias

À primeira vista, para acalmar as mentes preocupadas com a possibilidade de que a instituição do Juiz das Garantias altere substancialmente o papel do juiz criminal, a não ser para aprimorar a sua desejável imparcialidade ou, ao menos, para torná-la mais aparente e induvidosa aos olhos do jurisdicionado (o que também é fundamental), cabe observar que os juízes que forem atuar nessa novel posição, praticamente, exercerão as mesmas funções que hoje o juiz de primeira instância exerce na fase inquisitória, decidindo sobre questões que estejam sob “reserva de jurisdição”, por afetarem direitos sensíveis à preservação da cidadania, ou seja, adotando decisões que dependam de ordem judicial no curso da investigação e antes do oferecimento da denúncia.

A diferença substancial é que não será o mesmo juiz que, depois de atuar na fase da investigação, vai também presidir a instrução processual e sentenciar o feito ao final. A ideia é que o juiz que decidiu sobre questões como busca e apreensão, escutas telefônicas, prisões antecipadas, suspensão de sigilo ou medidas assecuratórias em geral, em relação ao futuro acusado, não forme sua convicção antes de se cumprir a fase judicial do processo, sendo substituído por outro assim que seja oferecida a denúncia. Aqui, uma questão entre as mais relevantes sobre o julgamento das ADIs.

A Lei nº 13.964/19 havia determinado que a competência do Juiz das Garantias cessaria com o recebimento da denúncia, que, assim, ficaria a seu cargo. E, mais: que os autos da investigação não acompanhariam a denúncia, não sendo, portanto, apensados ao processo, com exceção das provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas (como delações, por exemplo) ou, logicamente, antecipação de provas, tudo com o sentido de não adiantar ao juiz da instrução e julgamento os elementos que deveria ele próprio conhecer, a partir da atuação das partes, acusação e defesa, na fase judicial (art. 3-C, §§ 1º e 3º, do CPP).

Não obstante esses claros comandos legais, no referido julgamento o STF decidiu que seriam inconstitucionais e, ainda uma vez, mediante “interpretação conforme”, atribuiu a competência para o recebimento da denúncia ao juiz da instrução e julgamento, que receberá a integralidade do quanto produzido na fase da investigação, assim desdizendo o que ficara decidido pelos representantes do povo.

Também decidiu-se pela inconstitucionalidade do art. 3º-D do CPP, qual seja: “O juiz que, na fase de investigação, praticar qualquer ato incluído nas competências dos arts. 4º e 5º deste Código ficará impedido de funcionar no processo”. Aqui cabe indagar: mas não seria esse o cerne da separação entre um juiz que atue no inquérito e outro que faça a instrução e prolate a sentença? Quem sabe o acórdão nos esclareça a esse respeito.

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A implantação do Juiz das Garantias, segundo a determinação do Supremo, ocorrerá em um ou dois anos. Tudo indica que, nesse tempo, serão criados grandes departamentos de inquéritos, voltados a essa competência exclusiva, embora a mim pareça sempre melhor que, sem nenhum dispêndio ou grandes mudanças, bastaria que o juiz que funcionasse na fase da investigação não ficasse responsável, também, por instruir o processo e o sentenciar, o que já garantiria a isenção necessária. Mas, agora, é esperar para ver como cada tribunal vai cumprir as regras legais e aquelas que foram definidas pela Corte Suprema.