Por Antonio Ruiz Filho
07 de julho de 2020
A privação da liberdade, latu sensu, como meio de proteger a sociedade do infrator da lei penal, vem sendo questionada ao longo do tempo sob o influxo de ideais iluministas. Contudo, apesar do sofrimento que impõe ao seu destinatário, o que em nada atenua os efeitos da ação criminosa consumada, ainda hoje a prisão, provisória ou definitiva, continua a ser largamente utilizada como consequência da nossa cultura judiciária, assim produzindo resultados duvidosos.
Já era tempo de fazer melhor uso de outras fórmulas de proteção social contra o crime, mais eficientes e menos degradantes, para além da sanção corporal que ainda prevalece como vã tentativa de aplacar a criminalidade. Enquanto isso não ocorre, pela imposição de medidas mais compatíveis com os avanços da civilização moderna, os operadores da Justiça criminal precisam conduzir-se no sentido de evitar excessos e danos desnecessários, ou até contraproducentes, procurando utilizar a possibilidade de prender a serviço do sistema, e não para incorrer em perniciosas deformações.
A prisão "por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente"1, no ordenamento jurídico pátrio - excetuada a prisão temporária que tem outra natureza jurídica -, pode ocorrer em dois momentos distintos e bem delimitados: na sua forma cautelar, para impedir a continuidade da prática criminosa e assegurar a efetividade do processo, decretada na fase investigatória ou durante a ação penal e recursos a ela inerentes; ou, na segunda hipótese, para cumprimento de condenação definitiva à pena privativa de liberdade ao final de tudo imposta.
Essa lógica estrutural que permite a prisão, na forma cautelar antes da condenação irrecorrível e, depois, a partir do trânsito em julgado, para cumprir a pena, é uma das fortes razões para se objetar a chamada "prisão em segunda instância", pela sua disfuncionalidade, não fosse a existência de regra constitucional impeditiva, consubstanciada na cláusula pétrea da presunção de inocência (art. 5º, LVII, c.c. art. 60, § 4º, IV, ambos da CF). Com o advento da lei 13.964/192, esse binômio também passa a ser protegido pela lei ordinária, que busca evitar a confusão entre as duas modalidades3.
Aliás, a citada lei, em que pese ter surgido no bojo do famigerado "Pacote Anticrime", cuja versão original mais restringia direitos da defesa que atendia às suas propaladas finalidades, curiosamente, implantou avanços bastante significativos no processo penal, especialmente no que se refere às prisões cautelares.
Em reforço ao processo penal de índole acusatória4, impede que o juiz possa tomar a iniciativa de prender cautelarmente (arts. 282, § 2º, e 311, ambos do CPP). Tornou legalmente expressa a excepcionalidade da prisão cautelar, a ser decretada apenas "em último caso" (arts. 282, §§ 3º e 4º, do CPP), antes assim considerada pela doutrina e jurisprudência - característica, entretanto, até agora amplamente desrespeitada, bastando verificar-se que cerca de 30% da população carcerária é formada de presos provisórios (mais de 220 mil pessoas5).
A lei nova também impõe que a prisão preventiva seja autorizada apenas quando não for cabível uma ou mais medidas alternativas entre aquelas previstas no art. 319 do Código de Processo Penal, cujo afastamento deverá estar expresso, motivadamente, na decisão judicial que optar pela prisão (art. 282, § 6º, do CPP). Positivou as utilíssimas e bem-sucedidas audiências de custódia (art. 310 do CPP), antes unicamente previstas pela resolução 213/15 do CNJ, de modo a possibilitar que parte expressiva dos autuados em flagrante seja solta em poucas horas, quando antes a prisão se estendia por meses sem necessidade, até que fossem levados à presença do juiz pela primeira vez.
Também agregou aos pressupostos da prisão preventiva, além da prova da existência do crime e indício suficiente6 de autoria, "o perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado", que a par da vagueza conceitual que sempre gera dificuldades de aplicação, haverá de ser reconhecido e demonstrado no despacho que decretar a prisão preventiva, para em seguida acrescentar a necessidade da prisão a um de seus requisitos legais7 (art. 312 do CPP).
O artigo 315 do diploma processual - que apenas estabelecia ser a decisão sobre a prisão preventiva "sempre motivada" -, com as recentes alterações trazidas pela lei 13.964/19 passou a exigir muito mais, trazendo um rol de condutas que o juiz deve evitar como fundamentos da decisão pela custódia cautelar8, e que a tornam nula se praticadas. Ressalva, no seu § 1º, que a motivação do despacho deverá "indicar concretamente a existência de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada", impondo que a excepcional cautela de prisão haverá de estar assentada em periculum libertatis presente, atual, que não se esvaiu pelo decurso do tempo9.
Por último, quanto às prisões cautelares, a lei 13.964/19 inovou ao acrescentar parágrafo único ao artigo 316 do Código de Processo Penal, com o seguinte teor: "Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal".
A sobredita revisão obrigatória, a cada 90 dias, da decisão que decretou a prisão preventiva, sob sanção de ilegalidade em caso de descumprimento, é de fulcral importância para reparar a deformidade recorrente e gravíssima de se permitir prisões cautelares por prazos abusivamente longos10, que na prática judiciária chegam a durar muitos meses ou até anos, com a complacência dos operadores do Direito, exceção feita aos advogados. Não é demasiado afirmar que prisão provisória longa é em si um contrassenso, por tudo podendo equiparar-se ao cumprimento de pena sem condenação definitiva. A provisoriedade da prisão preventiva impõe que seja rápida, breve, efêmera, precária.
A decisão revisional, "sempre motivada e fundamentada", requer outros elementos implantados pela nova lei 13.964/19: a marcada excepcionalidade da prisão preventiva; a existência do perigo gerado pelo "estado de liberdade"; a verificação da subsistência dos motivos concretos que a justificam sob perspectiva atual (contemporaneidade); a impossibilidade de que suas circunstâncias permitam equipará-la à antecipação do cumprimento de pena; e que seja insuficiente a substituição por medidas alternativas à prisão11.
O prazo de 90 dias estabelecido para a revisão obrigatória do decreto prisional cautelar, à vista de tudo isso, passa a ser o novo marco legal para a duração da prisão preventiva, ainda que possa ser mantida por igual prazo e, assim, sucessivamente, cumpridas todas as formalidades impostas pelas novas diretrizes da lei 13.964/19 e que passam a integrar o Código de Processo Penal.
O termo "revisar" (empregado no art. 316, parágrafo único, do CPP) é revelador. Não se realiza por mera chancela, manutenção desmotivada, uma simples confirmação protocolar, cumprimento automático de mera formalidade. A revisão impõe que sejam reexaminados, mediante despacho "motivado e fundamentado", todos os elementos que suportam a prisão cautelar, como se fosse uma decisão primitiva. Não faria o menor sentido que sua prorrogação revisional fosse mera extensão da decisão anterior, à qual bastaria se reportar ou repetir.
A doutrina, desde muito tempo, vem criticando a prisão "provisória" sem data para acabar12. Para aferir o descompasso, seria melhor que viesse logo a condenação definitiva, a prazo determinado e com a possibilidade de progressão de regime.
Quando o novel dispositivo trata de impor essa obrigação revisional ao "órgão emissor da decisão", evidencia que esta necessidade vai além do primeiro grau de jurisdição, devendo ser cumprida pela autoridade que decretou a segregação cautelar originariamente, a cada 90 dias, independentemente da fase processual e até o trânsito em julgado, se antes não for revogada. Já se trava discussão sobre qual é a autoridade judiciária responsável por revisar a prisão cautelar, de acordo com a fase do processo13. A solução deve vir de normas internas dos próprios tribunais e pela jurisprudência, desde logo anotando-se que não haverá maiores dificuldades práticas à vista do processo eletrônico.
Outra conclusão que se pode haurir da nova sistemática imposta às prisões cautelares pela lei 13.964/19 é que não faz mais nenhum sentido (já não fazia antes) manter o entendimento do STJ esposado nas súmulas 2114 e 5215.
A decisão de pronúncia, que sequer julga o mérito da ação de procedimento do Júri, não justifica por si, ante a ausência de outros motivos autorizadores, a manutenção da prisão cautelar excessiva, nem tampouco o término da instrução processual pode superar a eventual abusividade pelo prolongamento da segregação provisória.
A par do vai e vem de fases processuais e prazos consentidos ou proibidos - como se estivesse a tratar apenas de números, e não do destino de vidas humanas -, o que se instaurou na jurisprudência é que não havia prazo certo, determinado, peremptório, para a prisão preventiva, o que vem redundando em prisões inescrupulosamente abusivas e demasiadamente extensas.
É tempo de reverter essa trágica situação, por tudo vergonhosa, sequer suplantada pela inclusão do inciso LXXVIII, no artigo 5º da Constituição da República, pela emenda constitucional 45/04, que impõe a duração razoável do processo, também sem estabelecer balizas temporais definidas, à mercê de critérios subjetivos do julgador e adstritos à casuística. Mas, se a duração do processo há de ser razoável, o que dizer da prisão "provisória", sem culpa formada...
À advocacia, que historicamente luta contra iniquidades e com frequência alcança estabelecer novos parâmetros de civilidade na aplicação das leis, incumbe a missão de bradar em todos os foros e perante todos os tribunais para que a prisão preventiva deixe de ser a imposição de um sofrimento sem fim determinado, de modo a fazer prevalecer o prazo de 90 dias como o novo marco temporal das prisões preventivas, mesmo que possa ser mantida por decisões revisionais, sempre orientadas por excepcionalidade crescente e com atenção redobrada aos seus pressupostos de validação e legalidade.
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1 Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de prisão cautelar ou em virtude de condenação criminal transitada em julgado.
2 A Lei nº 13.964, unindo-se aos festejos natalícios, foi promulgada aos 24 de dezembro de 2019, com alguns vetos presidenciais, tendo a parte que criava o juiz das garantias suspensa por decisão liminar emanada do Supremo Tribunal Federal.
3 Art. 313, § 2º, do CPP: Não será admitida a decretação da prisão preventiva com a finalidade de antecipação de cumprimento de pena ou como decorrência imediata de investigação criminal ou da apresentação ou recebimento de denúncia.
4 Cumpre salientar que o processo acusatório proíbe o juiz de se imiscuir na produção da prova, em oposição ao processo inquisitório, no qual o juiz, além de julgar, também pode investigar e produzir provas, sem a provocação das partes.
5 Dado do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) de 2019.
6 A lei abandonou a expressão consagrada "indícios suficientes" de autoria, sem alguma razão que o justificasse, talvez para deixar assentado que um único indício seria suficiente.
7 São requisitos da prisão preventiva a garantia da ordem pública, econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal.
8 O § 2º, do art. 315 do Código de Processo Penal, modificado pela Lei nº 13.964/19, é uma reprodução do art. 489 do Código de Processo Civil.
9 "(...) Nas prisões cautelares, a provisoriedade é um princípio básico, pois são elas, acima de tudo, situacionais, na medida em que tutelam uma situação fática. Uma vez desaparecido o suporte fático legitimador da medida e corporificado no fumus commissi delicti e/ou no periculum libertatis, deve cessar a prisão (...)" (Lopes Jr., Aury, in "Direito processual penal",14ª ed. - São Paulo: Saraiva, 2017, p. 588.)
10 Recentemente, sabe-se que prisões preventivas alongadas conduziram a colaborações premiadas que, sob o rigor da lei, deveriam ser espontâneas.
11 Antes da mudança legal, esse ponto já era defendido pela doutrina: "(...) uma medida não será necessária se a finalidade puder ser alcançada por outro meio ao menos igualmente eficaz e que não restrinja o direito fundamental afetado, ou restrinja-o com uma intensidade menor. Nesse sentido, 'o cidadão tem direito à menor desvantagem possível' (...)" (citando Canotilho, Capez, Rodrigo, in "Prisão e Medidas Cautelares Diversas: A individualização da medida cautelar no processo penal", São Paulo: Quartier Latin, 2017, p. 289/290).
12 "(...) Nesse contexto, acerca da necessidade de estipulação de prazos para o processo penal, e principalmente para decisões cautelares, Luigi Lucchini, discorrendo a respeito da prisão preventiva, já disse que 'como última forma coercitiva para casos excepcionalíssimos, deve ter limites inexcedíveis de duração, mesmo para não favorecer a inércia e a comodidade dos juízes' (...)" (Delmanto Junior, Roberto, in "Liberdade e prisão no processo penal: as modalidades de prisão provisória e seu prazo de duração", 3ª ed. - São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 375). "(...) Em razão da provisoriedade, as medidas cautelares necessitam de um fator temporal de contenção, sob pena de se transformarem numa antecipação indevida da satisfação da pretensão punitiva do Estado (...)" (Capez, op. cit., p. 378).
13 Neste contexto, confira-se decisão monocrática no Habeas Corpus nº 589,544/SC, sob relatoria da Min. Laurita Vaz (22.06.20).
14 Súmula 21 do STJ: "Pronunciado o réu, fica superada a alegação do constrangimento ilegal da prisão por excesso de prazo da instrução".
15 Súmula 52 do STJ: "Encerrada a instrução criminal, fica superada a alegação de constrangimento ilegal por excesso de prazo".
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